A linguagem cinematográfica
As diferentes formas de construção de sentido na narrativa.
O cinema custou a ganhar o status de arte pela elite intelectual mundial. Desde sua invenção no fim do século 19 e durante muitos anos, décadas, o cinematógrafo fora visto como mero experimento científico. As imagens por ele produzidas causavam encanto e espanto, mas porque eram vistas como ilusão de ótica. O cinema era estranho às pessoas. Seu atrativo era a novidade. Pela primeira vez na história era possível ver imagens em movimento produzidas por uma máquina.
Como (quase) toda nova criação, o cinema era incrível. Porém, marginalizado. Críticos e pensadores não acreditavam que a invenção dos Irmãos Lumiére seria capaz de fazer como o teatro: contar grandes histórias, adaptar clássicos literários… Tudo que é possível hoje era inimaginável há 100 anos. Foi por volta dos anos 1920 que o cinema começou a ganhar uma linguagem própria e complexa, até conquistar o status de sétima arte. "Oto patamá".

Sergei Eisenstein: um dos grandes teóricos de cinema e montagem. Foi aluno do professor Lev Kuleshov.
A montagem
Uma das técnicas responsáveis pela evolução do cinema foi a montagem. Nos primórdios do cinema, o montador tinha a função simples de reunir as diferentes cenas de um filme respeitando a sua ordem — início, meio e fim. Com o passar dos tempos, o cinema foi ganhando estudiosos. Teóricos que descobriram que a forma como as imagens são “montadas” tem o poder de transformar os sentidos dessas imagens e da narrativa cinematográfica como um todo.
Achou complicado?
Eu mostro abaixo.
Com uma técnica chamada Efeito Kuleshov.
O teórico russo Lev Kuleshov demonstrou que uma mesma imagem pode transmitir significados diferentes para o público a depender da imagem que a sucede ou antecede. Observe o exemplo acima. Primeiro vemos um prato de sopa. Depois, um homem. A sequenciação de imagens, a montagem, induz que o homem observa o prato de sopa. Que sentimento o olhar dele transmite? Segundo o experimento, a compreensão natural do espectador é de que seu olhar expressa fome.
Então, o professor Kuleshov antecedeu essa mesma imagem, desse mesmo homem, pela imagem de uma criança dentro de um caixão. E tudo mudou! Um segundo grupo de pessoas observou essa sequência e a interpretação foi de que esse homem está triste, de luto, emocionado pela morte da menina. Então, aquela mesma imagem do homem foi encadeada por uma terceira imagem, de uma mulher posando para fotografia. E a interpretação de um terceiro grupo de pessoas foi outro, de que o homem está encantado pela moça, gosta dela, sente desejo.
Fome, tristeza, desejo. Uma mesma imagem, três sentidos distintos. Graças à ordenação de imagens. Graças à magia da montagem.

Efeito Kuleshov: uma mesma imagem pode ganhar sentidos diferentes quando intercalada com outras imagens.
A magia do cinema
A montagem foi muito estudada ao longo desses 100 anos e possui inúmeras formas de criar sentidos para o espectador (por meio de ritmo, tom, métrica etc). E a montagem é apenas uma dentre várias técnicas que compõem a narrativa cinematográfica — uma forma de arte audiovisual.
Eu costumo dizer que o grande público perde isso de vista; que o cinema é uma arte audiovisual, e o que isso significa. O que está longe de ser um problema, pois o cinema funciona justamente quando consegue capturar a atenção involuntária do espectador. Ou seja: o bom cineasta, e o bom filme, envolve o seu público, o tem distraído, para, assim, manipular suas emoções. Cabe ao teórico, professor ou crítico de cinema destrinchar como essas obras articulam os muitos elementos da (hoje) sofisticada linguagem cinematográfica, como esses artistas exploram som e imagem, para cativar seu público.
Você já percebeu que o Superman é sempre encenado de baixo para cima? Essa angulação de câmera tem por objetivo exaltar sua grandeza. O contrário também vale: retratar um personagem de cima para baixo exprime inferioridade. Voltando ao Homem de Aço, perceba como a luz às suas costas e as mãos erguidas de uma pessoa, na cena acima, transformam o super-herói numa divindade, num deus. Essa é a fotografia construindo sentido sozinha, independente de falas.
Um dia ensolarado no bosque é um belo cenário para uma obra de fantasia voltada ao público infanto-juvenil. Vide filmes como Turma da Mônica — Laços (2019) e Conta Comigo (1986). Faça o teste: pegue a imagem abaixo, suba para o Instagram ou qualquer outro editor de fotos e remova aos poucos a saturação da imagem. Quanto menos solar, mais sombrio fica o bosque, até virar um cenário digno de filmes de terror como A Bruxa (2015) ou A Bruxa de Blair (1999). Agora o som: coloque a trilha do suspense de Halloween (1978) numa cena de Esqueceram de Mim (1990) e perceba como a banda sonora transforma completamente o tom de uma sequência. Faça o contrário: imagine o vilão Freddy Krueger com uma camisa de listras azul bebê e rosa claro. Em vez de medo, capaz de você rir da cara dele.








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